segunda-feira, 15 de abril de 2013

Retrato de São João del-Rei em 1818, segundo John Luccock, 6: forca, fome, frutas e perfume...


A sede do Governo era uma casa grande e robusta, de dois pavimentos, bem situada tanto para observar o que se passa na vila como para despachar negócios públicos. Junto a ela, acham-se as repartições públicas que formam um dos lados de uma praça por acabar, ficando-lhes fronteiras algumas casas singelas e sólidas e, bem no centro, a forca das execuções públicas, que sempre se coloca "in terrorem" nalgum ponto muito frequentado de cada vila da província.

O cadafalso é aqui encimado por uma figura de Minerva, brandindo alto um sabre desembainhado à mão direita, em vez de lança, e na esquerda sustentando a balança da Justiça. Não traz venda aos olhos nem tampouco aparenta calma firmeza em sua atitude e fisionomia, mas sim a fereza toda de um Marte enraivecido.

A cadeia fica na rua principal, edifício amplo e sólido, feio e rebarbativo, como talvez de fato deva ser; sujo e repelente, conforme se poderia esperar de maneiras e hábitos do povo. Numerosos são seus inquilinos, sempre visíveis através das grandes janelas sem vidros e gradeadas, e sempre a mendigar. Os crimes que se lhe imputam são, na maioria, capitais e, dentre estes, nenhum existe tão vulgar quanto o assassinato.

De casta bem diversa é a Misericórdia, ótima instituição, convenientemente arranjada, mantida em bom estado e que, em grande parte, é sustentada à custa de contribuições voluntárias. Depõe muito a favor do caráter dos cidadãos. Seus fundos são bem geridos e, geralmente, empregados em auxiliar cerca de cinquenta doentes, todos eles homens. São eles admitidos sem indagãções nem distinções, salvo aquelas que dizem respeito às suas doenças e miséria.

...

Dentro em breve tive a honra de  ser convidado à mesa de um grande fidalgo, ali encontrando os funcionários civis e militares do lugar e muitos dos seus principais habitantes. Foi o jantar servido com grandes mostras de hospitalidade, mas despido de qualquer exibição de superioridade  ou afetação desnecessária. Não se consentia ali nenhum formalismo rígido, mas pareciam todos tão a seu gosto como se estivessem numa casa particular de pessoa igual. Pareciam todos contentes, demonstrando satisfação sincera.

A parte que maior impressão causou ao meu espírito foi a sobremesa, na qual serviram-se 29 variedades diversas  de frutas nacionais, feitas em compota, cultivadas e fabricadas nas vizinhanças do lugar. Muitas delas eram novas para mim e houve uma espécie de tangerina branca que me atraiu a atenção, tanto pela sua cor singular como pelo seu excelente perfume.

A época das frutas principia em dezembro e dizem ser muito abundante, coisa de que não se pode duvidar razoavelmente, por isto que atestada pela luxuriante aparência das árvores e pela natureza favorável do clima

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Retratos de São João del-Rei em 1818, segundo John Luccock - IV: fé em Deus e pé na "trava"*


"A igreja que a todas demais sobrepuja em aparência exterior, se bem que não em categoria, é a de São Francisco, que se acha numa praça de tamanho regular, na melhor parte da cidade, mas que, porém, tal como grande parte dos outros edifícios sagrados, está ainda por terminar. Isto não impediu que nela tivéssemos ouvido missa, entre andaimes e guindastes, e ali observássemos uma congregação de fiéis, mais séria e atenta tanto às rezas quanto ao sermão do que todas quantas até hoje vi, em qualquer país católico ou localidade da região romana.

Quando terminada, esta igreja há de produzir excelente impressão. É toda feita de granito e terá uma frontaria flanqueada de duas torres e uma representação em escultura dos padecimentos de São Francisco. A outra, que já foi descrita,  é atualmente munida de uma só torre, que se acha destacada dela. Acham-se porém, em curso,  projetos de reconstrução da fachada, com dois campanários que, de acordo com o desenho apresentado, serão altos e bem proporcionados.

Um terceiro destes edifícios, que ainda não foi consagrado, ocupa também posição proeminente, feito de arenito que contém certo teor de ferro, mas ainda não se acha pronto para ser aberto ao público e as obras parecem seguir com tardança.

Numa quarta, na qual, devido a atraso meu, não cheguei a entrar, dizem existir  ornamentos esplêndidos e um interior todo recamado de ouro. Nalguns dos campanários acham-se suspensos sinos de peso considerável, circunstância essa que grandemente me admirou, pois que cada um deles deve ter sido trazido do litoral através das montanhas, suspenso entre dois burros feito uma liteira.

Em prol da religião, contudo, os brasileiros primitivos venceram grandíssimas dificuldades, melhorando o mais que podiam suas igrejas e delas fazendo quase que os únicos exemplares de bom gosto arquitetônico."

John Luccock, São João del-Rei, 1818.

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* A expressão popularmente repetida é "fé em Deus e pé na tábua". A opção por "Fé em Deus e pé na trava" é uma homenagem à são-joanense Conceição Assis dos Santos, que aos 93 anos, em 2012, feito pausa apagou-se como uma vela, silenciosa, numa manhã de domingo na antiga, retorcida, sinuosa e musical Rua Santo Antônio.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Retratos de São João del-Rei em 1818, segundo John Luccok - III: barroco tropical, brasileiro e intuitivo!


"Entre as igrejas, treze ao todo, existe uma que faz  as vezes de metropolitana, situada junto à rua prinipal e  construída de taipa. Não obstante sua aparência exterior modestíssima, contém ela alguns ornamentos extraordinários. À direita do altar, há uma linda cópia de um dos antigos mestres, representando a última ceia. À esquerda, uma outra, igualmente bela, apresenta Maria lavando os pés de Jesus e, em compartimentos inferiores, uns poucos quadros passáveis, de mau desenho, mostrando a chuva de maná no deserto e outros motivos tirados do Velho Testamento.

O teto desta igreja, que é arqueado, foi recentemente pintado à custa única de  um negociante da vila. As tintas são ótimas, mas não se combinam entre si e, compostas que são principalmente de vermelho, amarelo e azul, têm um aspecto bizarro, que somente mesmo ao bom gosto brasileiro pode agradar. Ao centro vê-se a imagem de Nossa Senhora do Pilar e o brasão de armas de Portugal. Àcima da cornija, à destra eocupando o comprimento todo da nave, acham-se os quatro evangelistas e, com eles alternando, um anjo posto numa espécie de púlpito saliente, enquanto que seus auxiliares , subalternos, na tarefa de salvar os homens, situados  em postos menos visíveis, se acham metidos em  recessos. Logo debaixo do coro e sob a proteção de São João, o artista esforçou-se por colocar  um retrato do cavalheiro à cuja custa o serviço fora executado.

No lado oposto do teto e esquerdo do altar, vêem-se motivos de gênero diverso. Aparecem ali representações de frades e freiras, com alusões alegóricas a visões e comunicações de origem divina, com que são eles favorecidos. A ideia da inspiração foi representada ali da seguinte maneira esquisita: de uma nuvenzinha emerge uma trombeta falante, cujo som, representado por fortes raios amarelos, incide direto no ouvido do padre ao qual está endereçada a informação sobrenatural.

O moço, que assim demonstrou sua habilidade, é natural do país e nunca viu pintura a óleo, com exceção apenas das que a própria igreja de São João del-Rei contém. Não deve, portanto, sua obra ser examinada com a severidade da crítica. Os contornos e expressões são bons, o traço é rude e falta relevo às figuras. Seus atributos, como bem se pode esperar, por vezes são incorretos e demonstram ausência de critério, bom gosto e instrução. Tal como tantos outros homens de talento, ele é pobre, pinta por preços vis e, se aqui permanecer, não deixará nunca de viver em miserável dependência."

John Luccock,  São João del-Rei, 1818

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terça-feira, 9 de abril de 2013

Retratos de São João del-Rei em 1818, segundo John Luccock - II: vila colorida, graciosa e alegre!



Ao pernoitar na vila de São João del-Rei, verifiquei que o número da última porta da rua era 887 e concluí ser esse o número exato de portas do lugar, pois que é costume dos brasileiros numerarem as entradas e não as casas, propriamente. A aparência geral de São João é a de todas as vilas portuguesas da mesma categoria. As casas são baixas, caiadas de branco e munidas de janelas de rótula. As ruas são estreitas, torcidas, longe de uniformes, e muito escorregadias, sendo pavimentadas com grandes lajes lisas e azuis, com um canal ao meio.

O assento das casas é de tal modo irregular que elas dominam e devassam umas às outras, sendo as que mais alto se colocam escolhidas para sede de repartições públicas ou para residências particulares melhores. Muitas dessas possuem, quando não vidraças, venezianas pintadas, o que empresta uma alegria e graça à vila, que por outra forma lhe faltariam. Em meio dela corre um rio largo e raso, por sobre o qual se lançaram duas excelentes pontes de pedra. Não existe mercado público e as casas de comércio são geralmente acanhadas e escuras, sem janelas como as do Rio e, na sua grande maioria, são fornidas de gêneros.

(John Luccock, São João del-Rei, 1818)

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Retratos de São João del-Rei em 1818, segundo John Luccock - I: quadro pitoresco e interessante!


O viajante inglês John Luccock visitou São João del-Rei em 1818 e fez minuciosa descrição da Vila de São João del-Rei nos seus mais diferentes aspectos: humanos, geográficos, econômicos, sociais, políticos, religiosos e muitos outros.

Por se tratar de um documento muito importante para a memória de nossa cidade - e também pouco conhecido e divulgado - o transcreveremos neste almanaque eletrônico. Para a leitura se tornar mais agradável, permitindo imaginar e aprofundar no que Luccock escreveu, o documento será publicado em partes, divididas aleatoriamente porém obedecendo sua sequência original e a grafia da época.

Embarquemos no tempo!...

"Cerca de 200 pés abaixo da igreja do Bomfim, estende-se a Vila de São João d'El-Rey. O primeiro dos epítetos pelo qual se a designa indica ser ela um agrupamento de segunda ordem, somente inferior a uma cidade e munida de todas as repartições próprias de tal categoria. Do local em que estacamos, muitas ruas são nitidamente visíveis, o curso de um ribeirão amplo e raso coleando através da vila, as duas pontes que o transpõem, os edifícios públicos todos e muitas casas particulares, entre elas destacava-se muito a de meu amigo Aureliano, distinguindo-se, como aliás várias outras, pelas janelas envidraçadas e outros traços de superioridade.

A mistura de numerosas igrejas com as casas, de telhas vermelhas e ainda não enegrecidas pelo fumo, de telhados não deformados pela intromissão de chaminés, de paredes feitas limpas e alvas pela aplicação de argamassa e caiação, do calçamento cor de cinza das ruas, das areias amarelentas do rio e do verde dos jardins, formava um quadro pitoresco e interessante. De um modo geral, a cidade é compacta, sua forma aproximadamente circular e sua situação e porte muito semelhantes aos de Halifax, no Yorkshire.

O cenário vizinho é grandemente montanhoso e apresenta estranha mistura de morros arredondados e rochedos fragmentados, de aridez e verdura, de pobreza do solo e riqueza da vegetação, de jardins em meio a desertos e de conforto em plena desolação.

Após contemplar com espanto e prazer uma tão estranha paisagem, pensei comigo: Será essa a cidade da qual por dez anos tanto ouvir falar? Onde será que se efetuam os seu tantos e conhecidos negócios? Onde se consumirão tantos gêneros que ela recebe? Onde estarão as habitações dos seus comerciantes, seus armazéns e suas lojas?  Onde as residências de seus fregueses e auxiliares? Onde as lavouras que lhes dão os produtos e os fornecem de um excesso exportável?

Tendo por algum tempo gozado deste panorama do local e tendo-me vestido e dispensado os criados, montei e segui morro abaixo, indo até a casa de meu amigo, onde fui recebido cordial e cortesmente. Mostrou-se evidentemente surpreendido e pareceu algo desapontado com o fato de aparecer eu tão cedo, pois estava prestes a partir, juntamente com alguns amigos, para Estiva, onde pensavam que eu almoçaria esse dia. Sinceramente satisfeito por se ter evitado tal cerimônia, embora agradecido pela intenção, prevaleci-me de outros sinais de bondade para para pôr-me dentro em pouco completamente a gosto naquela casa"