sábado, 7 de dezembro de 2013

Coração são-joanense: poema de glória escrito, terra querida e formosa...


Minha relação com São João del-Rei é abissal. Aqui nasci e passe grande parte de minha vida. Desde os primeiros anos morei na Rua de Santo Antônio e permaneci até o final da década de setenta. Rua tortuosa, charmosa, as casas com seus quintais e seus quintais com suas histórias. A capela do padroeiro, as barraquinhas.Aprendi muito cedo a decifrar cada símbolo produzido e exalado pela cidade.Exalado porque, como mágica, entranhavam pelos ares, pelos poros e chegavam até nossas almas.

Dos jardins floridos, meu cheiro predileto é o do manacá. Lembra casa da avó com mesa posta. O que eu mais gostava de ouvir da varanda de minha velha casa era os dobres dos sinos de São Francisco.  Tinha ali algo encantador. O som chegava com tamanha nitidez que dava para ouvir o barulho do badalo ferindo a bacia.

Tinha também o som da corneta do antigo Regimento Tiradentes. O despertar com a rotineira alvorada e, no final da noite, o toque do silêncio. Num compasso ritmado éramos despertados, como também convidados ao repouso noturno. Naquela época a cidade tinha menos carros e a propagação do som era fantástica.

Depois, as duas pontes de pedra, bicentenárias. Não consigo imaginar São João del-Rei sem elas. Duas guardiãs que traduzem muito bem nosso espírito de mineiridade. Estabelecem, em silêncio, a ligação entre o velho e o novo, entre o tempo chuvoso e o tempo da seca. Entre o tempo profano dos carnavais e o tempo sagrado das procissões. O Córrego do Lenheiro, que preguiçosamente corta a cidade, se enfurece arrastando tudo o que vê pela frente no tempo das águas. Com isso, conseguimos contemplar o sentido sólido das pedras.

Um dos primeiros núcleos urbanos tombados pelo IPHAN, São João del-Rei trás dentro de si muita história forjada durante 300 anos de ocupação, porém não perde a perspectiva do renovar, do desafiar e do transgredir. A cidade olha para o passado, ora contemplativa, reflexiva, extasiada e embaraçada.

O pelourinho de pedra toma outro significado. A Ponte da Cadeia não mais conduz ao calabouço e o bairro do Segredo não consegue mais guardar o que foi dito nas horas mortas da noite.

Os sinos ainda são arautos de uma religiosidade nascida de várias matrizes culturais. As torres não são mais espaços proibidos. Os sonhos são vividos e experimentados por todos. A maria fumaça ainda consegue serpentear nas margens do Rio das Mortes, sempre apinhada de gente com sede de histórias.

Não poderia deixar de lado a magia dos largos vários - Rosário, São Francisco, Carmo, Largo da Cruz, das Mercês, cenário de uma das representações mais barrocas das Minas coloniais: o descendimento da cruz.

Não foi fácil chegar aos 300 anos lúcida e com vigor. Muita água passou por debaixo das pontes, muito ouro foi bateado, muitas lágrimas derramadas. Mas, hoje, dia de Nossa Senhora da Conceição, e quando se comemora três séculos da elevação de São João del-Rei à categoria de Vila, temos muito a festejar.

Não consigo me desgrudar deste meu velho torrão natal. "Há nas rochas de tuas montanhas um poema de glórias escrito. Salve terra querida e formosa. Salve terra de São João del-Rei!"


Jairo Braga Machado
São-joanense, historiador

No ícone abaixo, o Hino de São João, do qual o verso em azul faz parte.


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